Quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Ninguém me Conhece: 23) Las Canciones Más Hermosas del Mundo de Joaquín Sabina
Depois de Noel Rosa, ninguém revolucionou tanto a música popular brasileira quanto Chico Buarque de Hollanda. E revolucionou sem revoluções. Amante da tradição, chegou timidamente, sem experimentalismos, mas sua aparição teve o efeito de um furacão. Claro que houve outros, inclusive os movimentos, como o da bossa nova e o da tropicália, mas o rapaz de olhos claros, sozinho, causou mais estrago na arte de se fazer canção popular. Tom Jobim foi um gênio incontestável, mas era letrista bissexto. Caetano é excelente letrista, mas se dá o luxo de errar não poucas vezes. Outros vieram, mas ainda têm que comer muito arroz com feijão pra superá-lo. De estilo inconfundível, rimas sufocantes e temas dos mais variados, Chico trouxe à canção popular uma elaboração tal que até hoje não foi superada. Apesar de o Rei ser outro, ouso dizer que o filho de seu Sérgio é o Pelé de nossa música.
(Quando eu lhe disse que a paixão/ Por definição não pode durar/ Como eu podia saber/ Que ela ia morrer de chorar?/ Não seja tonto, me censurou,/ Essa explicação ninguém solicitou/ Então melhor se calar/ Sinceridade assim não posso aguentar/ E assim foi que eu aprendi/ Que em histórias a dois convém às vezes mentir/ Que certos deslizes são/ Narcóticos contra o mal de amor/ Eu pretendia dizer que o destino é patrão do desejo/ Que a cama é um ringue de boxe onde cada assalto é um beijo/ Que o que arrepia a pele e agita o sangue termina/ Vira lixo a se acumular com a triste rotina/ Eu pretendia dizer a verdade ainda que fosse amarga/ Contar que, mais que as suas medidas, a Terra era larga/ Eu quis pintar-lhe um mundo real, e não um cor-de-rosa/ Mas ela preferia escutar mentiras piedosas/ Que o que arrepia a pele e agita o sangue termina/ Vira lixo a se acumular com a triste rotina/ E quando, após a quinta cerveja, falei de uma moça/ Que me fez perder a cabeça, gritou:/ – Cala essa boca de uma vez, por favor!/ E assim foi que eu aprendi/ Que em histórias a dois convém às vezes mentir/ Que certos deslizes são/ Narcóticos contra o mal de amor./ Eu pretendia dizer a verdade ainda que fosse amarga/ Contar que, mais que as suas medidas, a Terra era larga/ Eu quis pintar-lhe um mundo real, e não um cor-de-rosa/ Mas ela preferia escutar mentiras piedosas.)*
E o que Chico tem a ver com essa história? Explico: citei-o pra dizer em qual companhia o desconhecido Joaquín Sabina está. Sim, eu disse desconhecido. Se Sabina andar pelo calçadão de Copacabana ou pela avenida Paulista, por mais espalhafatoso que seja seu vestuário, vai, quando muito, conseguir algum olhar de esguelha. Nos restaurantes, pode comer sossegado, sem que venha um bando de fãs perturbar-lhe a paz. Mas estou me referindo ao Brasil. Se dissesse que o mesmo ocorre em países como Argentina ou México, por exemplo, diriam que estou de miolo mole. Por quê? Porque Joaquín Sabina, el Flaco, é o Chico Buarque da Espanha. Com muitas doses de rock’n’roll a mais, por supuesto. E a relação entre a Espanha e os países latino-americanos de língua espanhola, graças a Deus, não é igual a de Brasil e Portugal. Dessa forma, Sabina lota estádios em países como Uruguai, Argentina e México. Perdoem pela comparação com Chico, um realmente tem muito pouco a ver com o outro musicalmente, fora a voz um tanto esquisita e a encantadora poesia, mas foi a estratégia que encontrei pra falar de Sabina, visto ser ele o maior poeta da música espanhola... Estarei me repetindo?
(Corre, disse a tartaruga; vem me pegar, disse o covarde;/ Já tô de volta, disse um cara que nunca saiu da cidade;/ Salva-me, disse o carrasco; sei que foi você, disse o culpado;/ Cala a boca, disse o surdo; hoje é quinta, disse a terça;/ E não perfume frases que me façam cair na conversa/ Quero ficar só comigo/ Com o íntimo inimigo que se esconde num porão do meu coração/ O receoso, o fugitivo, a face oculta de um refém/ O filho bastardo da cautela/ O que apenas se revela, se eu me revelar também/ O caprichoso, o orgulhoso,/ O outro, o cúmplice traidor./ Eu tô falando é com você, que nunca escuta meus conselhos/ Eu tô gritando é pra você do outro lado do espelho/ Que tá cansado de viver aí chorando de joelhos/ A quem nada devo além do empurrão que ontem/ Me fez cometer essa canção./ Não minta, disse o mentiroso; passe bem, disse o coveiro;/ Não perca a sua alma, disse, pesando a carne, o açougueiro;/ Prova-me, disse o veneno; ama-me com o ódio dos amantes/ Qual seu preço?, disse o gângster; tô limpo, disse o traficante;/ Já tava me entregando quase a ponto de explodir as bases,/ Quando, à beira do caminho,/ Uma flor, com seus espinhos, me cegou, e eu pude ver lábios de mulher/ Que tal me pagar um trago?/ Eu te levo onde quiser/ Quando bebo, gosto de um afago/ Eu lhe perguntei quem era. Disse que era mais de mil:/ A puta, a santa, a bruxa, a fada… Falou calada e me sorriu.)*
Todos sabemos que o Brasil é uma ilha de língua portuguesa cercada por hispanofalantes, mas o problema não é esse. O problema é que por aqui não há o menor interesse pela farta cultura que se produz nessa língua. Nossa preguiça e nossa subserviência ao Tio Sam acabam roubando de nós o contato com uma riqueza com a qual nem sonhamos. Aos poucos procurarei trazer a este espaço um pouco do que descobri em minhas andanças, mas hoje gostaria de falar simplesmente do melhor, digo, mejor: Sras. e sres., apresento-lhes o espetacular Joaquín Sabina!
(Com meus quarenta e dez/ Quarenta e nove dizem que aparento/ Mas, se chegou a vez/ De deparar-me com o delicado momento/ De passar a pensar/ Em recolher-me, e, sentado à uma mesa,/ Me resignar a ditar testamento/ [Perdão pela tristeza]/ E pra que meus dependentes, constrangidos a um futuro furado,/ Não sofram o que sofri, vou decidido/ A não lhes deixar legado/ Só meus poemas de amor/ Um corte no coração e um mar de dúvidas/ Co’a condição de que não os liquidem no atacado, minhas viúvas/ E, quando minhas filhas sintam na alma/ Saudades de minhas pilhérias/ E um brusco calafrio mostre a bastilha/ Onde passo as minhas férias/ Serei um mal exemplo a se trancar/ Do lado esquerdo do peito/ Junto com os beijos que não soube dar/ E os meus diversos defeitos/ Porém sem pressa, que a missas de réquiem/ não sou lá muito chegado/ E o terno de madeira que estrearei/ Nem foi ainda plantado/ E o frei que vai me dar a extrema-unção/ Ainda é menos que um filho/ E que pra ser comercial, esta canção carece/ De um bom estribilho/ Desde que saio com a pálida dama/ Ando mais morto que vivo/ Porém, dormir o sono eterno em sua cama/ Me parece excessivo/ E tudo o que nunca me cansei de buscar/ Em lábios, mares sem portos,/ Dizem que há beijos vindos de ultramar/ Que ressuscitam os mortos/ Se de visita, vierem à minha cova/ Quando for meu aniversário/ E eu não estiver, favor ninguém se comova/ Até que volte o otário/ Pois quem irá se importar/ Se um pobre morto mantém ainda seus vícios?/ No dia do juízo final, quem sabe Deus venha advogar em meu benefício/ Porém sem pressa,/ que a missas de réquiem/ não sou lá muito chegado/ E o terno de madeira que estrearei/ Nem foi ainda plantado/ E o frei que vai me dar a extrema-unção/ Ainda é menos que um filho/ E que pra ser comercial, esta canção carece/ De um bom estribilho.)*
Esqueçam Maná, deem tchau ao Manu Chao, tratem com carinho Jorge Drexler, mas sabendo que este é um apadrinhado de Sabina, este senhor de voz rascante movida a álcool e nicotina, que é coisa seriíssima! Este feiticeiro das palavras encontrou a fórmula de manipulá-las a seu bel prazer, e estas, obedientes, não lhe oferecem resistência, entregam-se, dóceis, como cordeirinhos. Este señor é seu pastor, e nada lhes faltará! Que sorte têm estas palavras-ovelhas! As metáforas mais lindas e inimagináveis estão em seu DNA, as rimas, tipo A, correm-lhe pelas veias, e o que é mais fabuloso: generoso, ele não conhece economias, algumas de suas letras, quilométricas, são verdadeiros contos em versos.
(Era uma vez uma velha serpente/ Que trouxe uma maçã e disse: prova/ Eu me chamava Adão, e, certamente, era você a Eva/ Morávamos num prédio sob embargo/ Dois miseráveis de outra região/ Era no Largo do Arouche um paraíso sobre o chão./ No lixo achamos três cadeiras brancas/ Um colchão roto e uma mesa manca/ Enquanto Eva estava nas frituras, eu borrava partituras./ Sabíamos passar bem sem a janta/ Ficar nus com a roupa no varal/ Fumando dessa planta/ da ciência do bem e do mal./ O céu sorri quando Eva se bronzeia/ Naquelas tardes, no terraço, ao sol/ Ninguém viu mais linda sereia em seu estado natural./ E, de repente, em cada janela,/ Tinha um marido perdendo estribeiras/ Sem se importar se passasse na tela Corinthians x Palmeiras./ Um dia, a víbora do prédio em frente/ Ao ver seu homem como nunca o viu/ Ficou doente e telefonou pra Defesa Civil./ Sem documentos, nem mesmo um registro,/ Galhos de arruda, ou tio vereador/ Não teve nem um cristo que viesse em nosso favor./ Eva tomando sol/ Pecado original/ Beijos, arroz, feijão/ Quer mais o quê, Adão?/ Um deus-juiz que fez de si mau uso/ Nos declarou, fora de seu juízo:/ Não há mais vagas para dois intrusos nesse paraíso./ Sobre o colchão, estávamos sem roupa/ Jogando o nosso jogo favorito/ Ao ver entrar a tropa/ Eva não pôde sufocar um grito./ Escada abaixo lhe gritava “desce!”/ Um uniformizado querubim/ Sem se importar que ela estivesse prestes a dar à luz Caim./ Hoje, na feira-livre, Eva vende/ Maçãs da árvore do ex-patrão/ Num shopping toco nosso happy end/ Todos me chamam Adão.)*
Além de grande cantautor, Sabina é dono de um carisma invejável. Nas entrevistas, é espirituoso e divertido, nos shows, encanta o público, que canta junto as letras, inebriado. De quebra, além da obra, tem uma história de vida digna dos melhores roteiros de cinema. Jovem, teve problemas com o pai, policial; mais tarde fugiu do exército e do governo de Franco e foi parar na Inglaterra, país onde viveu por longos anos, defendendo-se cantando na noite; de volta à Espanha, embora tivesse vergonha da voz “de taquara rachada”, influenciado por amigos, investiu na carreira e, por conta da genialidade de suas canções, em pouco tempo se firmou como um dos grandes nomes da canção espanhola e não perdeu o status até hoje. E (mais uma vez a exemplo de Chico) sua voz, que o envergonhava, passou a ser amada por multidões de fãs. Sua grande frustração, contudo, é ser mais conhecido por suas canções que por sua poesia, visto ser também poeta inspirado, autor de uma infinidade de sonetos, muitos deles publicados em seus livros de poesia. Recentemente fez uma turnê por vários países do globo com o não menos famoso Joan Manuel Serrat (quem?). Infelizmente o show não passou por aqui. "Será que algum dia eles vêm aí cantar as canções..." que ninguém conhece?
(Eu não quero um amor civilizado/ Com contrato e cenas de sofá/ Eu não quero que viajes ao passado/ E voltes do mercado/ A ponto de chorar./ Eu não quero almoços com vizinhos/ Eu não quero plantar pra ter raiz/ Eu não quero dar rosas sem espinhos/ Em datas pra ser feliz./ Eu não quero te acompanhar na feira/ Eu não quero que escolhas meu xampu/ Eu não quero usar uma coleira,/ Pendurar as chuteiras,/ Me enterrar qual tatu./ Eu não quero dormir domingo à tarde/ Eu não quero um playground no jardim/ O que eu quero, coração covarde,/ É que morras por mim./ E contigo morrer, se te matares/ E matar-me contigo, se morreres/ Porque o amor, quando não morre, mata/ Porque amores que matam nunca morrem./ Eu não quero fazer economia/ Nunca soube chegar ao fim do mês/ Eu não quero comer no fim do dia/ A refeição sadia/ Dos que não têm mais vez./ Eu não quero esse ar-condicionado/ Eu não quero beijar tua cicatriz/ Eu não quero Veneza em seriados/ Nem postais de Paris./ Não me esperes com teu advogado/ Nem me queiras de volta sem paixão/ Eu não quero ser livre acorrentado,/ Nem carne nem pecado,/ Orgulho ou compaixão./ Eu não quero cegar o que não viste/ Nem fazer um amor assim-assim/ O que eu quero, garota de olhos tristes,/ É que morras por mim./ E contigo morrer, se te matares/ E matar-me contigo, se morreres/ Porque o amor, quando não morre, mata/ Porque amores que matam nunca morrem.)*
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Ouça algumas das canções más hermosas del mundo de Sabina aqui.
L
*Todas as versões são de Léo Nogueira, vulgo eu.
viernes, 30 de diciembre de 2011
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